sexta-feira, 25 de março de 2011

Saneamento, saúde, sociedade ... em qual ½ ambiente você está?

eu e minha família em casa de campo
Curupá - Tabatinga - São Paulo
início dos anos 1980
     Faça um teste. Imagine um lugar onde você tenha brincado na infância. Um lugar com árvores e água corrente de um rio ou riacho. Procure em antigas fotografias estes lugares e pergunte aos mais velhos sobre outros lugares de outras antigas fotografias. Escolha 2 ou 3 aleatoriamente e tente descobrir como estes lugares estão hoje. Com o aparato das redes sociais talvez seja possível conseguir informações quase instantâneas. De Curupá (Distrito de Tabatinga, interior de São Paulo) tentarei mostrar o Rio São João. Passei parte de minhas férias de infância e adolescência em Curupá. Por lá vivia com meu irmão tudo o que era quase impossível numa metrópole como era São Bernardo do Campo nos anos 80 e 90. Nadar nos rios e represas, pescar, correr pelas ruas, soltar pipas sem medo de ter a linha cortada, rolar na terra, jogar bola, pegar as bicicletas e sumir, apanhar frutas do pé ... ir até onde as pernas e os jovens pulmões conseguissem ir... tudo muito ingênuo e empolgado como já soava nos sonhos de vida no campo que preenchiam minha infância. Ao atravessar a rua, chegávamos à casa de campo de meus tios (Elza e Luís - também de São Bernardo) onde estavam mais primas. Nas temporadas quase toda a família se reunia em Curupá... era uma molecada enorme. Além disso, acho que metade de Curupá era formada por pessoas com algum grau de parentesco conosco. Quantas vezes, ao final das férias, me perguntaram se queria ficar por lá. Sempre quis ficar por lá. A casa de campo que meu pai havia comprado era muito antiga (o que é uma forma gentil de dizer que: estava caindo). O terreno tinha uns 600m2, o que era muito perto do sobrado geminado quase sem quintal onde eu morava em São Bernardo. A Mangueira do nosso quintal era a maior de lá. Mesmo com uma boa vida de classe média do ABC, naquela época preferiria morar em Curupá, mesmo se fosse para morar naquela casinha quase caindo. Quando estávamos em Curupá nas férias de verão, sempre freqüentávamos o Rio São João. As águas eram claras. O leito era formado por areia e pedras típicas do fundo dos rios. Na maior parte dos trechos que conheci, o rio era raso e limpo. Sabíamos onde haviam pontos de saída de esgoto (eram os melhores lugares para se pegar lambaris... e obvio que pegávamos...). Depois de 10 anos, há cerca de 7 anos estive em Curupá. Ainda tenho muitos parentes por lá. Para se ter idéia de minha relação com este rio, durante as visitas que fiz a muitos parentes queridos de lá, entre uma visita e outra, levei minha atual esposa (namorada naquela época) para a ponte de onde era possível ver parte do rio. Chegando lá foi uma imensa decepção. O rio estava destruído. Parecia uma canaleta de esgoto. Uma água (se é que era água aquilo) escura, acinzentada e fétida. Fiquei muito triste e impressionado com o que vi. Tanto que escrevi um poema (ou algo parecido com um poema):
eu e meu irmão no rio São João - Curupá - Tabatinga - SP

A Morte do Rio São João

Estive ausente por mais de 10 anos
E nesse tempo te guardei vivo na memória
Não vi tua agonia
Não tive noticias tuas
Outro dia numa foto
Me vi em teus braços doces
E eu estava feliz
Por muitos breves momentos de minha infância
Foste meu passa tempo
Alguns pulavam em ti sem medo
Outros, como eu, não tinham coragem
Chegavam mais receosos
Mas logo se entregavam
Cheguei a me aproveitar de tua generosidade
E tirei sustento de tuas entranhas
Do alto via um único ponto
Onde nossa ignorância jorrava dentro de ti
Mas parecia pouco, parecia normal
Os pequenos lambaris até pulavam ali
Como se nossos restos fossem seu banquete
Dia desses fui te apresentar
A minha companheira
Cheguei eufórico e cheio de belas estórias
Mas quando te avistei
Minha euforia transformou-se em tristeza
Não pude crer naquilo que via
Te vi minguando
Nossa ignorância te feria em muitos pontos
10, 100 não sei quantos
Nem mesmo o mais valente ousaria pular em ti
Teus braços doces cederam ao peso da burrice
Fiquei triste e nostálgico
Tentei contar como eras
Mas é difícil crer em tua morte
Te olhei por alguns minutos e parti
Queria fazer algo
Talvez te curar, te ressuscitar
Mas me falta tempo
E tempo falta a todos
Tempo falta a ti
Que não mais acolhe sonhadores em teus braços
Não por não querer
Somente por não poder mais
Pena daqueles que te mataram
Pois suas crias não desfrutarão de ti
Que estas palavras choradas
Tirem lágrimas d’outros tantos
Que ao te verem te encham de vida
Pois é vida que deves jorrar
É água que deves sentir correr
E não nossa estupidez...
...não nossa indiferença...
brincando no rio São João...
minha mãe e minha prima às margens do rio São João
reparem que a mata ciliar ... opa, qual mata ciliar?
     Anos depois, enquanto dava uma palestra para um grupo de jovens ambientalistas, um dos moleques que estava participando do evento me mostrou um álbum de fotos de quando ele tinha 7 anos e brincava numa nascente de um riacho e fotos do mesmo local 6 anos depois... irreconhecível. Tudo destruído. Cada um de nós deve saber de um lugar bonito e com água limpa que foi destruído, brutalmente transformado ou sucumbiu pelas transformações que o homem provocou em seu entorno. Se as autoridades fossem mais rigorosas, a maioria dos lugares utilizados por banhistas hoje teria placas dizendo: “LOCAL IMPRÓPRIO PARA BANHO”. A destruição é rápida e ao mesmo tempo silenciosa. Para os mais despercebidos, pouco importa o destino do lixo e do esgoto. Para alguns “progressistas”, canalizar o rio que passa perto de sua casa é um avanço... é o progresso! Impermeabilizar a rua é o máximo do desenvolvimento. Porém, todo mundo sabe que a natureza precisa ser protegida, aliás, ela precisa ser recuperada, o que depende da proteção e de um conjunto complexo de ações. A base das ações é sempre a educação. Desta forma, é com as crianças que os trabalhos bem elaborados e executados farão a diferença, o que supõem resultados à longo prazo (10, 20, 30 anos). Além da educação, o Estado precisa dos aparatos tecnológicos e humanos para realizar a “proteção” e a “promoção” da “boa nova”, ou seja, gente motivada para as ações, políticos preparados para representar o povo e fazer políticas públicas adequadas à realidade e equipamentos públicos para executar as atividades. Tudo isso requer tempo, determinação, honestidade e investimento. Ainda assim, a principal transformação tem que vir do Povo.
lixo e entulho em beira de rio (Água Branca - Araraquara-SP)
córrego Água Branca
córrego Água Branca - Araraquara - São Paulo
córrego Água Branca - Araraquara - São Paulo
durante processo de canalização
a recuperação e proteção passam longe destes métodos impactantes...

pela consulta que fiz no Google earth
deu pra notar que o problema da mata ciliar
continua no rio São João (e a imagem google é de 2004...)

Obs.: Estou à procura de fotos do Rio São João em Curupá SP. Por favor, os interessados em ajudar... enviem fotos. Vamos fazer uma campanha pela recuperação das matas ciliares...

     Vamos examinar alguns exemplos para tentar compreender melhor formas sustentáveis de resolver problemas simples que acabam virando problemas complexos e cíclicos.

Limpeza de vias públicas, guias, sarjetas e calçadas
calçada pavimentada tomada pelo mato
     É comum, ao andarmos pelas ruas, nos depararmos com calçadas em péssimas condições. Ou pelos buracos ou pelo mato, lixo e até mesmo pela largura de alguns passeios públicos, o fato é que em certos lugares é difícil caminhar. É comum também, observar que o meio fio, ou sarjeta, fica cheio de mato. Boa parte do ano, graças ao hábito de lavar os quintais, é dada condição favorável para o crescimento de capim nas sarjetas e calçadas. Pois bem. Quem deve resolver este problema? O Estado? O Morador? Uma terceirizada? Ninguém!?... Geralmente o Estado contrata equipes, como “frentes de cidadania” e “programas sociais” e passa a executar a retirada da vegetação que cresceu no meio fio. Vez ou outra, estendem o trabalho às calçadas. O trabalho é predominantemente braçal e bastante desgastante. Usam “chapinhas”, enxadas e roçadeiras costais, removem tudo, menos uma coisa... o buraco onde novamente nascerá capim depois de algumas semanas. Pode ser idiotice minha, mas acredito que se o trabalho fosse limpar de forma bem caprichada e corrigir as falhas, as mesmas equipes, quando viessem a ser contratadas novamente, fariam pequenas manutenções nestes serviços e poderiam partir para outras atividades, o que seria um avanço e um ganho de qualidade. Recentemente, ao se investigar reclamações de moradores de um bairro da Vila Xavier (Araraquara) junto à Vigilância Epidemiológica local, descobriu-se que os focos de mosquitos eram predominantemente na água parada em sarjetas obstruídas por mato e sujeira... Minha opinião é a seguinte: Gradativamente, o poder público municipal (de qualquer Município) deveria mapear as áreas e executar manutenções duradouras”. Além de se economizar materiais e recursos públicos, poderia-se melhorar a prestação dos serviços com a redução de trabalhos repetitivos de manutenção, o que libera recursos para outras e novas frentes de ação. No caso “suposto”, poderíamos esperar que os trabalhadores fossem contratados para fazer a limpeza e a calafetação dos buracos e frestas por onde o mato nasce e cresce (tudo de forma supervisionada e priorizando a qualidade dos serviços). O outro aspecto é o trabalho de orientação e coerção junto aos proprietários de imóveis para que as calçadas sejam confeccionadas e mantidas em ordem. Caso contrário o filme será o mesmo todos os anos... uma limpeza corrida e mal feita que dura entre 30 e 60 dias e o restante do ano com mato, criadouros, água parada e lixo, ou seja, doenças e gastos extras para os cofres públicos. Um Município como Araraquara possui em sua história uma tradição de bons sanitaristas e de bons e maus momentos diante da Saúde Pública relacionada à zeladoria da Cidade. Já foi a Cidade mais limpa da América, ainda está entre as mais arborizadas, é considerada o melhor lugar do Brasil em termos de qualidade de vida e, ainda assim, também historicamente, a Cidade já foi palco de grandes epidemias, o que até lhe rendeu o pseudônimo de “Pragaquara”, e vive novamente uma situação ruim no campo da Saúde preventiva. Aquela conta que diz que para cada R$1,00 gasto com Saneamento Ambiental se economizam de R$4,00 à R$7,00 em Saúde é chavão em qualquer lugar do Mundo. Se sabemos disto, o que está acontecendo quando optamos por gastar em Saúde o pior valor e ainda assim de forma equivocada.
sarjeta e calçada com mato
     Outro ponto importante que devemos observar é que a prioridade é para a circulação de veículos e não de pedestres e bicicletas... o que é uma tremenda inversão de valores.

Vamos ao exemplo das árvores, ou da arborização pública
calha obstruída por folhas...
     Por incrível que possa parecer, é comum o discurso das pessoas querendo a remoção de uma árvore de sua calçada. Pessoas ficam chocadas com o desmatamento na Amazônia, mas sempre que têm a chance, arrancam suas árvores e concretam tudo o que podem... quintais, calçadas, estacionamentos. Alguns por causa de brocas e cupins, outros, por causa do tamanho (mal escolhido) das árvores, outros por causa da “sujeira” que a árvore faz com suas folhas. É fato que a arborização da maioria dos municípios brasileiros é precária por alguns aspectos: as Cidades são pouco arborizadas; as arborizações são feitas com espécies pouco variadas; as espécies são geralmente exóticas e não apropriadas para a região onde foram plantadas; pessoas plantam árvores muito grandes em seus quintais e calçadas sem pensar no tamanho do problema futuro; as espécies são suscetíveis à ação dos cupins ... Por outro lado, com um pouco de boa vontade e planejamento é possível se equacionar todos os problemas “causados” pelas árvores. É possível se treinar equipes de poda e manutenção das árvores. É possível se adquirir os equipamentos necessários para os trabalhos. É possível, através de incentivos reais e amplos, estimular que as pessoas plantem e cuidem de árvores em seus quintais e calçadas. É possível que tenhamos árvores nativas da região, árvores frutíferas e belas flores. É possível combater as pragas e cupins... O que se vê, via de regra, são pessoas que conseguem a autorização para remover uma árvore de sua calçada, o fazem e fecham o local destinado ao plantio, ou seja, chega de árvore por ali... Só que nas Cidades o problema é ainda maior. Apesar de ainda parecer besteira para muita gente, a questão da proteção da flora, da fauna, dos mananciais e a questão do aquecimento global são questões de VIDA ou MORTE. Sendo assim, os Municípios devem fazer todo o esforço possível para garantir que em seu território a água seja protegida. Sejam as águas de superfície (dos rios, nascentes e represas) ou sejam as águas subterrâneas, temos que nos empenhar em garantir a qualidade deste fundamental elemento da natureza. Nas cidades, ruas arborizadas são indiscutivelmente mais agradáveis aos olhos e menos quentes e abafadas. Dentro dos esforços necessários para se protegerem os mananciais, estão as matas ciliares e as áreas de recarga do aqüífero. Então, além da arborização urbana, o Município precisa de bosques, áreas de preservação, mata ciliar (e esta impecável, dentro da lei e, se possível, mais protegida ainda) e parques municipais. Se fôssemos criar uma empresa para lidar com estas situações, teríamos que ter um grande aparato técnico e funcionários treinados e motivados (quando falo em motivação, é obvio que o dinheiro é importante, mas reconhecimento e valorização dos profissionais também pesam muito). É dever do Estado lidar com isso e creio, mais uma vez, que seria viável fazer bem feito e gastar menos do que se gasta para fazer na correria e, consequentemente, mal feito. Folhas de árvores não podadas entopem bueiros e calhas. A ausência de varrição freqüente, seja pelo morador ou pela limpeza pública, acarreta em problemas de saneamento e acabam chegando na Saúde, já como doença. Aí, todos sabem, fica mais caro e o risco para as pessoas é maior. Além de todos os benefícios para o meio ambiente, a arborização pode ser um atrativo turístico do Município. Tanto o turismo rural quanto o ecoturismo e os turismos de esportes radicais na natureza, desde que com limites e regras sustentáveis, são grandes geradores de emprego e renda e dependem de áreas bem preservadas e mantidas. Longe dos discursos, a realidade ainda está distante de ser aquilo que a Legislação atual exige dos municípios e dos particulares em relação à arborização e da defesa dos mananciais e cursos d’água... Há muito por fazer ainda.

Vamos falar um pouco sobre os bueiros e sobre o sistema de drenagem urbana
água parada em bueiro
     Muita gente acredita que os bueiros são portais mágicos que fazem coisas desaparecer. Digo isto pois já vi cenas que só podem significar isto. Pessoas jogam sacolas de lixo (destas de supermercado) nos bueiros; pessoas varrem a calçada e jogam as folhas e todo o lixo nos bueiros; pessoas catam as fezes de seus animais domésticos em pás e jogam nos bueiros; pessoas jogam o esgoto doméstico nas tubulações de água de chuva ligadas aos bueiros; pessoas jogam animais mortos nos bueiros; pessoas jogam restos de comida nos bueiros; pessoas podam árvores e jogam nos bueiros, pessoas jogam produtos químicos variados nos bueiros... e a lista é enorme... O que vai para o bueiro vai direto para o curso d’água sem qualquer tratamento... Considerando isto devemos imaginar que o trabalho educativo para reverter esta cultura é árduo e a fiscalização é fundamental. Outro fator de suma importância nesta equação são as equipes para manter e acompanhar as instalações do sistema de drenagem urbana, bem como as equipes especializadas em limpeza destas galerias e dos bueiros. Em Araraquara, por exemplo, a equipe é bem reduzida, os equipamentos são precários e sempre falta material para executar as ações. O pessoal se desdobra, porém, é humanamente impossível dar conta dos problemas que vem, desde a confecção das drenagens (muitas mal feitas e sem cumprir o projeto que foi licitado, boa forma de burlar licitações. Ganha a licitação para fazer 10 poços de visitação (PVs), mas faz só 4 e fica tudo certo) até questões operacionais e falta de estrutura e mão de obra. Mais uma vez, um problema simples, um acabamento mal feito, um desnível, algo errado e não checado, falta de equipes para trabalhar uma manutenção preventiva... acaba por cair e sobrecarregar a Saúde, custando muito mais caro para todos, ricos e pobres. Destes bueiros mal feitos e mal tratados saem escorpiões, baratas, ratos, moscas e mosquitos da dengue. Quem deve resolver isto? Quem está atento para isto? A modernização dos sistemas de drenagem urbana, assim como a manutenção e a melhoria destes é questão de engenharia e de bom senso... Não é para ser caso de Saúde... Mas acaba sempre sendo...
bueiro entupido
!!!???
     Existem finais de ruas em alguns bairros onde a recepção das águas de chuva e de limpeza de quintais não foi feita, ou seja, a água não tem para onde escoar... fica empoçada e causa problemas...

     Ou escolhemos um lado e tomamos posição em defesa das questões de saneamento, saúde e meio ambiente ou ficamos contra tudo isso, contra nós mesmos, contra a VIDA... Fiscalizar como as coisas acontecem na sua Cidade, no seu Bairro, na sua Rua... na sua Casa... este é o começo. Não seja um ser des-envolvido, ENVOLVA-SE!!!

     Semana que vem tentarei postar algumas vídeo reportagens (feitas se alguns amigos puderem colaborar). Tentaremos mostrar o quão simples são algumas saídas para questões que se arrastam por anos e ninguém tenta responder ou resolver. Parece que falar de coisas simples e produtivas é desinteressante. O negócio é criticar quem ousa sugerir e ficar buscando o inatingível sem nunca sair do mesmo lugar... temos que voltar a projetar o futuro. A vontade imediata de fazer coisas sem pensar nos atrasa muito...


IMPORTANTE: Todo o texto foi elaborado por mim tendo por base minhas experiências profissionais na área de Vigilância em Saúde e Meio Ambiente. Os registros fotográficos também são de minha autoria. Quando houverem informações ou imagens de outras fontes, elas serão mencionadas. Não me oponho ao uso deste material parcialmente ou na integra para fins educativos ou para a confecção de trabalhos escolares, porém, por uma questão de respeito, peço que qualquer imagem ou trecho de textos retirados deste Blog mencionem o link:


Obrigado.
Obrigado e até a próxima....

quinta-feira, 17 de março de 2011

As pessoas que ninguém quer ver (parte 2) (e um suposto problema numa suposta Cidade)

     Antes de iniciar esta postagem preciso comentar algo. É absurda a forma como as coisas são facilmente deturpadas e manipuladas. Basta alguém dizer algo de forma levemente tendenciosa ou leviana para um detalhe virar caso... uma virgula virar ponto de exclamação! Uma mentira virar verdade. Para exemplificar isso farei uma série de suposições e, assim como nas novelas, qualquer semelhança com a vida real ou com fatos e pessoas é mera coincidência...


manifestação de estudantes em frente à Câmara de Araraquara
     Suponha que numa Cidade com cerca de 200.000 Habitantes, pelo ano consecutivo, os casos de Dengue sejam elevados, chegando em 3 dos 4 anos à níveis de epidemia. Suponha também que, apesar de muito bem cotada nos institutos que supostamente medem os índices de desenvolvimentos social, econômico, humano e ambiental, esta Cidade (supositória, é lógico) possui inúmeros supostos problemas de saneamento, de saúde pública, de transporte, de educação, de meio ambiente.... Como qualquer Cidade moderna. Suponha ainda que parte destes problemas seja supostamente desprezada (e mascarada) pelo poder público e principalmente por aqueles que deveriam elaborar as supostas “políticas públicas”. Teremos que continuar supondo... Então, suponha que nesta Cidade supositória existam criadouros em quase todos os imóveis. Do terreno sujo à casa bem cuidadinha da vovó... pra todo lado que se olha se vêem pessoas que não estão nem aí... ninguém cuida da própria casa e alguns, além disso, ainda jogam lixo no chão, entulho nos terrenos, lixo e esgoto nos bueiros e botam fogo no mato... Os supostos vereadores(as) e políticos(as) profissionais desta suposta Cidade estão muito supostamente ocupados em aumentar os próprios salários e aumentar o número de pessoas supostamente mamando no Estado, desta suposta forma fica difícil acompanhar as reais demandas desta suposta População, ainda assim, alguns poucos supostos vereadores e vereadoras tentam fazer um suposto trabalho de suposta contestação e argumentação mais próximos da suposta realidade. E suponho que estas coisas (oposições e situações) mudem muito de lado de um governo para outro. Nesta Cidade, como em qualquer outra que você possa estar supondo, há funcionários públicos. Como em qualquer lugar, seja no meio público ou no privado, há gente trabalhadora e honesta e há aqueles que sejam, vamos dizer, supostamente “folgados”. Sempre há o supostamente “puxa saco” e sempre há supostas injustiças. Sendo assim, suponhamos que uma parte dos funcionários responsáveis pelo controle da Dengue desta Cidade, em determinado momento, tenha supostamente deixado de cumprir suas supostas obrigações. Cada um pelos seus supostos motivos, justos para alguns, falhos para outros, alguns dentro da lei, outros fora dela. De qualquer forma eles até tinham alguns supostos motivos: supostamente não recebiam a insalubridade; supostamente ao fazer arrastões nos finais de semana recebiam supostamente muito menos que os supostos funcionários das supostas terceirizadas (e para trabalhar supostamente mais); o prédio onde eles supostamente trabalham é uma suposta vergonha; o salário é supostamente pouco; o desgaste físico e emocional é supostamente grande; o representante político deste suposto local não dá o suposto exemplo... mesmo supostamente assim, responsabilidade é supostamente responsabilidade. Tenho que lembrar que são meramente suposições. Suponha que por algum motivo dentre os poucos funcionários que não levam supostamente muito à sério seu suposto trabalho, alguns cometeram algum suposto erro ou agiram de forma supostamente equivocada. Nesta suposição, suponhamos que sejam abertos alguns processos administrativos (diferentes do meu) para apurar supostos fatos como: suposta falta não justificada em arrastão da suposta Dengue; supostos atrasos na entrada em serviço (isso já é supostamente descontado do suposto pagamento); deixar de supostamente executar tarefas cotidianas ou executa-las de forma supostamente faltosa... Enfim, supondo serem estes motivos adequados para abertura de supostos processos ou sindicâncias, e não discordo disso, levando-se em conta que em alguns casos a ausência possui supostamente justificativa legalmente correta e que o(a) supostamente acusado(a) pode estar sendo vítima de um suposto erro ou injustiça, ainda assim é muito inimaginável supor que um governo teria coragem de dizer que isso ... estes poucos e importantes servidores públicos ... seriam os supostos responsáveis por uma nova suposta epidemia. Porém, mesmo antes das apurações efetuadas, os casos de Dengue começaram a supostamente pipocar por todos os lados... a População sendo supostamente “comida” por mosquitos de dia e de noite... a zeladoria desta Cidade estaria supostamente precária... a População estaria supostamente vendo mato, lixo, entulho, mato, lixo, entulho e buracos... a relação entre o suposto poder público e seus supostos subordinados estaria supostamente desgastada graças a supostas perseguições e falas supostamente agressivas e equivocadas na imprensa... Como explicar outra suposta epidemia? Não dava para supostamente evita-la? Como anda o lado jurídico do Sistema de Vigilância desta suposta Cidade? Os Fiscais receberam capacitação jurídica para trabalhar com supostas Leis? Se, supostamente, não, qual o suposto motivo? (seria não aplicar a suposta Lei?...). E as condições de trabalho destes supostos funcionários? Atende ao que supostamente rege a CLT? Os supostos responsáveis pelas irregularidades, mesmo quando são os mesmos supostos palhaços de sempre, são autuados? Mesmo sendo supostos empresários e comerciantes? As autuações viram supostas multas? Viram mesmo? O cara paga? Tem certeza? Olha!!! Sei não hein... Para a maioria das pessoas o problema da Dengue nesta Cidade supositória seria causado por uma série de fatores. Mas, para o bom suposto político profissional, tirar o suposto fiofó da suposta reta é uma grande habilidade... chega ser um DOM! No lugar de compreender a situação e se elaborar um plano para médio e longo prazo; se construir uma sede adequada para as supostas atividades de Vigilância em Saúde (e são muitas); se valorizar os supostos profissionais envolvidos nas atividades; de buscar engajamento com os outros setores supostamente envolvidos... no lugar disso tudo, nesta Cidade que estamos supondo, escolheram outro caminho. Escolheram 12 supostos funcionários e tentam supostamente apontar para eles a causa da suposta epidemia de Dengue dentro da sua suposta casa, dentro dos bueiros do seu suposto bairro, dentro das supostas creches com crianças e funcionárias(os), postos de saúde e escolas, dentro dos supermercados e supostas lojas de roupas, dentro dos supostos ferros velhos, dentro das supostas indústrias e dos shoppings... querem supostamente dizer que é por causa de uma dúzia de supostas pessoas que teremos uma suposta epidemia, gente supostamente sofrendo, gente correndo risco de supostamente morrer... entendi. Essa foi muito supostamente boa mesmo... supostamente sensacional. Agora, nesta Cidade onde supostamente isso foi supostamente tramado, os supostos funcionários, que já não eram bem recebidos por uma larga parcela desta suposta População, serão supostamente taxados de vagabundos, incompetentes e outros palavrões. Genial a estratégia. Todos acreditarão que a culpa é supostamente destes funcionários supostamente acusados. Desta forma, quem supostamente ganha R$4.000,00 para supostamente resolver a equação da Dengue (e supostamente não entende nada disso e não participa do trabalho cotidiano) e  os responsáveis pela suposta Saúde e pela suposta Administração deste suposto Município se isentam das supostas críticas e cobranças. Supostamente lindo!!! Comovente!!! Destroem e brincam com as supostas vidas de algumas supostas pessoas, jogam supostamente sujo, supostamente mentem, supostamente escondem problemas, supostamente distribuem cargos, horas extras e vantagens, supostamente fazem mau uso dos recursos, supostamente desrespeitam a CLT, supostamente não resolvem os problemas de suas supostas alçadas e supostamente querem culpar o(a) suposto(a) trabalhador(a) da suposta base... o que já é o mais supostamente pisado e explorado. Era só o que supostamente faltava. Ainda bem que são só suposições... Supostamente atribuíram culpa à População e a alguns poucos funcionários. Supostamente pergunto eu: As escolhas políticas, a atenção e o direcionamento dado aos supostos problemas desta suposta Cidade foram eficientes? Deram resultado ou foram e estão sendo um suposto fracasso? Se teve um ano de suposta estabilidade, de quem foi o trabalho supostamente realizado? Qual o resultado até agora do suposto trabalho prestado por este suposto governo? Perguntas supostamente difíceis de responder...

Comentário final sobre este assunto:

     Você sabe quem paga as indenizações trabalhistas quando um funcionário de uma prefeitura qualquer passa por assédio moral, perseguições e ilegalidades? Você. É isso mesmo. Toda vez que representantes de administrações públicas cometem com seus funcionários atos entendidos pela Justiça como indenizáveis, você paga a conta. São processos de R$30.000,00, R$50.000,00, R$100.000,00... (e não são poucos). A perseguição e as ilegalidades foram praticadas por um grupo de pessoas ou por uma pessoa só, porém a conta é nossa. Que legal! Sendo assim, o administrador público pode fazer qualquer cagada com seus subordinados que tudo bem, se o cara botar no pau, o Povo paga. Pra que um político vai se preocupar em respeitar a Lei ao perseguir seus opositores? Ele é o Poder e o custo dos seus erros passam para o poder dos outros... Maravilha. Creio que isto precise mudar urgentemente!!! Esta conta não pode mais ser do Povo!!!

Essa tava intalada mesmo... Desculpem.
(minha 1ª postagem dá um bom exemplo de perseguição)

Curiosidade: Numa greve onde 2 dos quase 150 funcionários da Vigilância de Araraquara haviam aderido, um Juiz achou de suma importância que estes 2 voltassem ao trabalho para que todos os esforços fossem usados contra a Dengue. Pois bem. Eu era 1 dos 2 importantes servidores, mas agora, mesmo com a coisa pegando fogo, mesmo sem um motivo real, querem que eu fique em casa escrevendo, lavando louça e cozinhando... tudo porque algum “perito” me considerou “perigoso” no meu ambiente de trabalho. Meu processo é por ter falado coisas que um monte de gente já falava e fala abertamente. Desabafei e dancei. Ok! Não me importaria de estar trabalhando, pelo contrário, minha esposa é linha dura, tenho que manter tudo arrumadinho em casa, além disso tenho que limpar a calha, podar a árvore, cortar a grama, limpar a caixa d`água, fazer uns serviços de pedreiro, arrumar a antena, trocar umas telhas quebradas.....


IMPORTANTE: Todo o texto foi elaborado por mim tendo por base minhas experiências profissionais na área de Vigilância em Saúde e Meio Ambiente. Os registros fotográficos também são de minha autoria. Quando houverem informações ou imagens de outras fontes, elas serão mencionadas. Não me oponho ao uso deste material parcialmente ou na integra para fins educativos ou para a confecção de trabalhos escolares, porém, por uma questão de respeito, peço que qualquer imagem ou trecho de textos retirados deste Blog mencionem o link:


Obrigado.

     Voltando ao tema que me coloquei a trabalhar numa série de postagens, descreverei 2 casos muito diferentes e emocionantes. Sempre tento descrever com os detalhes que guardei em minha memória as coisas que tenho postado. Algumas cenas que vi eram tão impressionantes que ficaram em minha mente como se fossem fotos. Não sei se assim como as fotos elas desbotarão com o tempo... nem tampouco se se apagarão, o que sei é que de alguma forma, os fatos que relato me marcaram muito e sempre me fazem pensar na vida... no que espero dela... no quanto tenho para oferecer... no quanto realmente ofereço... e sempre, sempre mesmo, fico incomodado. Deve ser isto que me faz ir adiante...

Caso da Ângela

     Para iniciar devo dizer que o nome da Ângela não é Ângela. Não é meu objetivo expor pessoas ou lugares, apenas fatos e memórias.

     Certa vez, recebemos uma ocorrência com forte conotação de problema social. Quando digo isso tenho franco conhecimento que questões sociais, ambientais e de saúde andam sempre ou quase sempre juntas. O que me dava esta certeza era o relato da pessoa que fez a notificação: Casa com ratos (pequenos e grandes) onde mora uma moça usuária de drogas com um recém nascido, um senhor de idade e dois adolescentes. Sempre temos o hábito de fazer contato pessoalmente com quem pede o atendimento. Isso facilita a compreensão dos fatos e evita que o fiscal entre em “brigas de vizinhos”, o que é muito comum também. Procuramos a Notificante. Era uma senhora negra meio gordinha com cerca de 60 ou 65 anos. Tratava-se de pessoa muito bem esclarecida e super simpática e agradável. Sua casa estava impecável. Ela disse ter visto e ouvido ratos no local, mas nós não encontramos fezes de roedores (rato não gosta de lugar limpo e arrumadinho, em lugares assim não há restos de comida. Quem gosta de bagunça e sujeira é o ser humano. O rato gosta é de comida!) Ela explicou que seu imóvel era desmembrado de forma que eram três residências distintas. Nos fundos vivia uma rapaziada jovem entre 19 e 25 anos. Tinha uns pitbulls e muitas fezes enormes de pitbulls pelo quintal. Do pouco tempo que ficamos lá deu pra sacar que era uma boca de fumo. Explicamos sobre a limpeza do quintal, sobre a forma de manter as rações e fomos para a rua. A Notificante contou que a moça que morava na casa ao lado da dela era usuária de crack, para agravar tinha um bebê com cerca de 6 meses com ela. Havia ainda um Senhor que, segundo ela, era “esclerosado”, e só estaria naquela casa por causa do seu cartão do benefício social. Além disso um casal de adolescentes teria se “juntado” e estaria morando ali também. Preparamos nossos sentidos e nossas almas e fomos ao portão da casa para chamar pelos moradores. A Notificante nos acompanhou. Chamamos... chamamos... chamamos... e, mesmo com o portão entreaberto e sem porta na sala, mesmo vendo que havia alguém lá dentro... ninguém saía. O padrão seria: “vamos embora”. Mas somos chatos e resolvemos pedir para a Notificante que nos acompanhasse para que tivéssemos uma testemunha de nossa vistoria. Empurramos o portão, demos alguns passos e vimos um armário de cozinha de frente para a porta de entrada, como se ele quisesse sair de lá. Não sei como meu parceiro (o grande Marcelão Castageni – meu mestre) viu o que vou narrar, mas eu vi a seguinte cena:

     Num sofá todo rasgado e sujo colocado no fundo de uma pequena sala conjugada com uma cozinha estava uma mulher com um bebê no colo. Ela estava amamentando, sendo assim, não olhei atentamente num primeiro momento, fiquei constrangido. Me atentei para as condições do lugar. Mas olhei novamente para entender melhor aquele quadro, afinal, eu estava lá para ver as pessoas. Quando prestei atenção não pude acreditar. A criança estava envolta em um dos braços da mulher enquanto mamava. Com a mão deste braço a mãe segurava uma lata furada onde estava uma pedra de crack. Na outra mão ela tinha um isqueiro. Enquanto seu pequeno e franzino filho lutava para sugar seu seio, uma mulher com menos de 30 anos, mas muito magra e debilitada, ela lutava para sugar a fumaça que saía da lata. Fiquei congelado. Normalmente só vemos estas coisas pela TV. Na TV não tem cheiro, não tem contato, não tem o mesmo peso. Ao lado havia uma porta que dava acesso a um dormitório. De onde estava olhei lá para dentro e vi um senhor negro com cabelo e barba bem grisalha sentado numa cama. Ele segurava um livro e ficava olhando o livro, murmurando e balançando o corpo para frente e para trás... para frente e para trás... O cheiro do imóvel era muito forte. Predominava o odor de urina humana e de roedores. Dei uma olhada no armário que vimos da entrada e estava forrado de fezes de roedores. A cozinha estava muito suja. Andei em direção ao dormitório e perguntei o nome daquele senhor. Ele continuou balançando e olhando o livro. Perguntei o que ele estava lendo. E ele continuou balançando e olhando o livro. O quarto estava imundo e fedia muito, de arder os olhos. Um amontoado de colchões e roupas, além do lixo, é claro. Da porta, olhei melhor aquele homem. Era um senhor que aparentava uns 75 anos. Ele estava magro e com a roupa bem suja. Tentei ver o que ele estava lendo e vi que era a Bíblia Sagrada, porém ela estava de cabeça para baixo, sendo assim, deduzi que ele não sabia ler. Notei também que ele apenas murmurava, mas não dizia nada. Ele não parou de balançar. Tentamos estabelecer contato com a mulher que estava com a criança e com a lata. Ela só dizia, repetidas vezes: sim senhor... sim senhor... Percebemos que não havia nada a fazer naquela hora, estava impossível. Até tentamos, mas não dava. Enquanto eu tentava entender aquilo tudo e pensava numa estratégia, o Marcelão vistoriou o imóvel, que estava muito precário.

     Saímos de lá desolados. Certas vezes, quando deixamos um lugar como este, mantemos o silêncio por alguns minutos. Talvez na esperança de ouvir de dentro de nós alguma solução... Depois de alguns instantes, começamos a avaliar possibilidades de ação e na hora pensamos: vamos ao Conselho Tutelar, pelo menos aquela criança a gente já tenta salvar já. Fomos e agendamos uma vistoria conjunta para o dia seguinte. O Conselheiro se mostrou muito prestativo e preocupado. Fomos ao local e desta vez estava apenas o Senhor e os dois adolescentes (um rapaz de 17 e uma menina de 15). Como fomos pela manhã, todos estavam deitados e foram acordados por nossa visita. Perguntamos imediatamente pela Ângela e pelo bebê. Os adolescentes disseram que ela havia ido ao Posto de Saúde com a criança para buscar leite. Resolvemos aguardar um pouco. Neste tempo, o Conselheiro Tutelar conversou bastante com os adolescentes, anotou informações, deu broncas... Passados uns 15 minutos, fomos ao Posto na intenção de encontrar a Ângela. Porém, algumas vizinhas disseram que quando ela viu nossas viaturas ela fugiu. Mais uma vez, poderíamos dizer: “agora é com o Conselho”. Mas somos chatos. Desta forma marcamos nova tentativa em conjunto. Fomos ao local na hora combinada. Depois de 30 minutos de espera, resolvemos ligar para o Conselheiro (a cobrar, já que não tínhamos crédito). Ele atendeu e disse que não poderia ir ao local. Segundo ele um assunto foi mencionado na imprensa e ele tinha que dar esclarecimentos urgentes. Fomos sozinhos ao imóvel para saber da Ângela e do bebê. Fomos informados que todos haviam fugido da casa e ninguém sabia para onde...

     Não sei se era a Bíblia que estava de cabeça para baixo nas mãos daquele pobre senhor... acho que era o Mundo que estava...

Caso da Dona Tereza

     A denúncia apontava para uma casa onde, segundo a Notificante, viveria uma senhora de idade no meio do lixo. Mais uma vez, a questão social e a questão do idoso. Como de costume, procurei pela Notificante. Por cima do muro de divisa via-se um quintal com mato alto e coisas jogadas, mas principalmente o mato. A Notificante e várias pessoas da vizinhança se aproximaram para participar da conversa, o que é ótimo para fazer trabalhos educativos espontâneos. Na conversa todos diziam num mesmo coro: “vem um monte de gente aqui, ninguém entra. Ela corre atrás com o cabo de vassoura. Ela finge que não está em casa. Ele só come quando algum vizinho leva comida. Ela se perde pela rua. Ela leva um monte de lixo pra casa. Ela esquece das coisas... (Meu avô teve Mal de Alzheimer, sei o que é). Tivemos conversas francas e sempre comento com a População das dificuldades de se resolver alguns casos. Fui até a casa e passei a chamar. As vizinhas diziam que ela estava em casa, mas que certamente não atenderia. Tentei... chamei pelo nome... nada. No meio das conversas alguém disse que a única coisa que a Dona Tereza adorava e falava sempre bem era do prefeito da Cidade. Segundo os vizinhos era devoção. Pode parecer cruel, mas tive uma idéia com isso. Como a Dona Tereza não atendeu, tive que ir embora para fazer novas tentativas em outras oportunidades. Em uma das tentativas, chegamos praticamente juntos ao portão. Eu a chamei pelo nome e estendi a mão. Ela olhou para mim com lindos olhos claros e perguntou: “Quem é você? O que você quer?” Não tive dúvida, disse na mesma hora, com clareza e convicção: “Sou o prefeito Dona Tereza!” Ela olhou... olhou... Acho até que desconfiou, mas abriu um sorriso e me deu um abraço. Segurou firme minha mão e perguntou: “No que é que eu posso ajudar o senhor?” Respondi: “Fiquei sabendo que a Senhora está passando algumas dificuldades em sua casa. Me falaram que a Senhora precisava de ajuda e eu vim dar uma olhada. Se for verdade vou pedir pessoalmente para vir um monte de gente boa aqui pra ajudar a Senhora. Só que pra saber pra onde eu mando os pedidos eu queria dar uma olhadinha na casa da Senhora.” Ela relutou. Disse que não estava preparada, mesmo assim me conduziu até à garagem (o que já era um grande avanço). Dali já se sentia um cheiro confuso de urina, gordura, fezes, baratas, bolor... e era possível ver que no meio do mato havia coelho, ou melhor criadouros. Dei uma boa andada pelo quintal retirando criadouros e focos de mosquitos. Mesmo com sua devoção pelo prefeito, ela não me deixou entrar na casa.
garagem
     Recorri a alguém que, de tão “louco”, sempre consegue estabelecer contato com os “loucos”. Nesta época, eu e meu atual parceiro de trabalho trabalhávamos em áreas diferentes da Vigilância. Solicitei uma vistoria conjunta e fomos nós. Como eu já esperava, ele rapidamente conseguiu convencer, nem me lembro como, a Dona Tereza a permitir que olhássemos e fotografássemos o interior da residência. Aí, bem, a partir daí conheci um mundo diferente. O mundo da Dona Tereza.

     Dentro de todo o imóvel estavam armazenadas sacolas e sacolas com todo tipo de coisas dentro. Aparentemente era lixo, mas no geral eram recicláveis. Peguei algumas coisas. Escolhi um saco com garrafas de amaciantes. Todas as garrafas estavam cheias de água. Muitas outras garrafas de muitas outras coisas estavam cheias de água. Para transitar de um lugar para outro, só em estreitos corredores entre sacolas e coisas empilhadas. Na cozinha, inúmeros recipientes com água e larvas de mosquitos. Abri a geladeira e tomei um susto. Ratos e baratas corriam de um lado para outro. A geladeira estava desligada, ainda assim, armazenava alguns alimentos. O banheiro não tinha chuveiro e, pela poeira, aparentava não ser muito visitado. No vaso sanitário a água estava baixa e com larvas de mosquitos. No quarto, um pouco mais de organização, apesar de todo o caos, mesmo assim, era o local mais agradável da casa. No quintal, havia esgoto aberto, muitos criadouros ainda e o mato. Percebi que ela não havia se lembrado de mim. Desta forma, qualquer tentativa de orientação ficaria literalmente no esquecimento.
sala
sala
corredor
cozinha
refrigerador
dormitório
     Quando saímos os vizinhos nos rodearam e começaram a conversar. Nesta conversa alguns familiares da Dona Tereza foram apontados e conseguimos conversar com eles. Não foi muito fácil, mas a família conseguiu tirar a Dona Tereza da casa por 1 dia. Foi o suficiente para que 3 fiscais (eu, Marcelão e Luis Fernando) e 2 motoristas (Sr. Clésio e o finado Sr. João), juntamente com 3 familiares da Dona Tereza removessem quase 5 toneladas de lixo. A quantidade de ratos que se matava só de se andar sem olhar para o chão era impressionante. Centenas de camundongos viviam ali. Dezenas de focos de mosquitos. Centenas de baratas... Quase tudo foi jogado fora. No meio das coisas penicos (e com brinde surpresa). A vizinhança colaborou fazendo lanches e servindo café e refrigerantes para nós que executávamos o trabalho. No início da manhã, cerca de 2 toneladas já haviam sido jogadas para cima de um caminhão por dois moradores, o motorista (respeitadíssimo e muito admirado por mim - Sr. Clésio) eu e o Marcelão.

     Num caso assim, a limpeza garante um pouco a situação para a vizinhança e melhora um pouquinho para o morador, por outro lado, com a volta da pessoa para o imóvel, além do choque que ela terá ao ver seu mundo todo transformado, não é difícil imaginar que não tardará a acontecer tudo novamente. A participação da família é crucial. Nunca podemos julgar. As vezes algumas pessoas buscam com seus erros caminhos tortuosos. No caso da Dona Tereza a família não era negligente, era desinformada sobre a doença da Dona Tereza e sobre os procedimentos legais em casos assim. Algum tempo depois da limpeza, os familiares tiveram que comparecer ao Fórum para definir a situação da Dona Tereza, fatos que transcorreram de forma positiva. Porém, antes disso, fizemos uma visita de rotina no imóvel. A Dona Tereza não estava e segundo os vizinhos estaria muito debilitada e internada. Fizemos alguns contatos e tivemos notícias de que ela estaria no Pronto Socorro Municipal, onde teria dado entrada prostrada e desnutrida. Fomos para lá para ter notícias. Nos informaram que dois dias antes ela teria dado entrada na Santa Casa de Misericórdia em situação muito grave. Fomos ao hospital e perguntamos pela Dona Tereza. Uma enfermeira nos apontou o caminho. Entramos nos corredores tristes da Santa Casa, descemos por rampas e entramos num corredor que estava sendo parcialmente reformado. Era quase final de nosso dia de trabalho e de nossa suada semana. Andamos lentamente pelo corredor. Mantínhamos o silêncio e olhávamos para dentro dos leitos. Pessoas deitadas, caras de dor, de medo... Num dos quartos, já perto do final do corredor, cuja porta mais próxima dá para a saída dos carros funerários, estava a Dona Tereza. Sozinha e magra, muito magra, a Dona Tereza estava apenas com aquelas roupas de hospital, de forma que suas costas estavam aparentes. Via-se a coluna cervical daquela mulher. Visivelmente desnutrida, a Dona Tereza estava sentada na cama, amarrada pelos pulsos e tornozelos com faixas de curativos. Um soro estava conectado ao seu braço. Seus cabelos brancos e longos estavam soltos e bagunçados. Ela olhava fixamente para a parede à sua frente, balançava o corpo para frente e para trás e dizia quase sussurradamente: “Me ajuda... me ajuda... me ajuda...” Fiquei uns 5 minutos olhando a cena que não se alterava... balançava o corpo para frente e para trás e dizia: “Me ajuda... me ajuda... me ajuda...” Sai de lá, arrasado. Piquei meu ponto, peguei minha bicicleta e fui para minha casa. Tomei um banho e, ao tentar contar este triste caso para minha esposa, chorei como quem perde um amor... Imaginei se poderia chegar àquele ponto. Tive medo. Imaginei que ela ainda poderia estar lá... daquele mesmo jeito e que talvez ninguém fosse vê-la naquele final de tarde e nem durante toda a noite e nem no final de semana. Que ela estava sozinha e deveria estar morrendo de medo... de sair pela porta dos fundos daquele corredor...

     Hoje, pela última informação que tive, a Dona Tereza vive bem com um dos filhos em São Paulo.

     Naquele pequeno pedaço da Cidade, alguns poucos moradores viram que é possível fazer algo mais e demonstraram admiração por isto...

     Na semana que vem uma postagem sobre saneamento, meio ambiente e saúde...

Obrigado e até a próxima....

quinta-feira, 10 de março de 2011

As pessoas que ninguém quer ver


IMPORTANTE: Todo o texto foi elaborado por mim tendo por base minhas experiências profissionais na área de Vigilância em Saúde e Meio Ambiente. Os registros fotográficos também são de minha autoria. Quando houverem informações ou imagens de outras fontes, elas serão mencionadas. Não me oponho ao uso deste material parcialmente ou na integra para fins educativos ou para a confecção de trabalhos escolares, porém, por uma questão de respeito, peço que qualquer imagem ou trecho de textos retirados deste Blog mencionem o link:


Obrigado.



     Dando continuação aos assuntos ligados à minha área profissional, tentarei trazer uma série de postagens que terão por foco as pessoas invisíveis. Sim, apesar de parecer coisa da ficção científica, existem muitas pessoas invisíveis na sociedade. Mesmo permeando quase todos os lugares e constituídos das mesmas coisas que nós – os seres humanos – , as pessoas invisíveis existem e são invisíveis mesmo. Elas vivem à margem da sociedade (daí o termo: marginalizados). Você já deve ter visto uma por aí. Estranhou? Como assim!? Visto uma por aí!? Pois é, o fato de você ter visto uma por aí não significa que você a tenha percebido. Perceber um ser humano, repleto de defeitos e qualidades como todos nós, não é tarefa simples. Você pode não estar entendendo ainda. Para mim também é meio confuso. Não sei se percebo as pessoas. Às vezes... também não as vejo... Sabe aquele mendigo que cata papelão e passa de cabeça baixa pela rua da sua casa? Sabe aquelas mulheres que se vestem com sacos plásticos pretos e comem restos de lixo pelas ruas? Sabe aquela senhora que corria atrás das crianças perto do cemitério e vivia numa casinha quase caindo?... Então, eu vi estas pessoas... estive nas casas delas... falei com elas... chorei com elas e por elas, ouvi suas histórias...


     Algumas profissões dão a oportunidade para que algumas poucas pessoas possam se colocar no papel de fazer o bem para transformar positivamente a vida de terceiros. Para algumas poucas pessoas, ou o destino, ou Deus, ou suas escolhas de vida... ou sei lá... alguma coisa faz com que elas tenham a chance de transformar para melhor suas próprias vidas e a vida de muita gente (ou de pouca gente)... mas a chance da transformação é dada. Destas poucas pessoas que recebem esta oportunidade, outras, bem menos ainda, aproveitarão esta chance de maneira eficiente. Falar de Jesus e de fé é lindo, todo mundo gosta de falar. O duro é adotar uma mínima parte do que ele ensinou. Difícil é entender qual o propósito da vida. Passar por ela!? Ser um idiota (ou uma idiota)? Não se preocupar com o próximo!? Ter para ser? Fazer fofoca!? Ser egoísta? É isso!!? Então fu...!!!!!

     Minha profissão não é das mais queridas para as pessoas. Normalmente não é o objetivo de ninguém. Para ser sincero nunca havia passado pela minha cabeça. Dificilmente você escutará uma criança dizendo: “Mamãe, quando eu crescer quero trabalhar na Vigilância, quero pegar ratos, matar mosquitos, entrar em buracos de esgoto, caçar escorpiões e cobras, passar venenos... é meu sonho mamãe!”. Menos ainda você ouvirá isso de estudantes do ensino médio. Nos cursinhos nunca ouvi ninguém dizendo: “Vou ralar agora nesta reta final pra passar no vestibular e fazer o possível pra me formar e trabalhar em atividades de campo da Vigilância em Saúde.” Nas universidades... aí as universidades... pouca gente, e põem pouca nisso, participa da realidade da população... não conhecem os lugares onde moram e não fazem parte da política ou dos fatos locais (salvo raras e eventuais pessoas sinceras e convictas de seus princípios), sendo assim poucos universitários tem a vontade de trabalhar em atividades de campo ou em prol da população. Muitos dos que se envolvem na política assumem a reprodução da velha e falida política partidária profissional, não querem mudanças, querem manter as regras corruptas e os benefícios escandalosos.

     Trabalho na área de Vigilância em Saúde há quase 10 anos. Passei 5 anos na Sanitária e agora faço parte de uma equipe muito peculiar dentro da Vigilância Epidemiológica. Trabalhar nesta equipe foi opção minha. Vi um grupo de bons profissionais fazendo coisas fantásticas com pouquíssimos recursos. Vi pessoas comprometidas e dedicadas ao trabalho que faziam e executavam projetos bons para a População. Minha rotina é bem agitada. Entro em várias edificações, residenciais e comerciais, de alto e baixo padrão, no perímetro urbano e rural e me deparo com as mais distintas situações todos os dias. Para quem faz trabalho de casa-a-casa do combate à Dengue, o número de casas visitadas por mês é impressionante, podendo passar das 500 casas. Meu trabalho é com todos aqueles bichos que já fiz postagens e mais alguns que nem deu tempo de postar ainda. Tanto nas casas quanto nas questões com pragas ou espécies da fauna sinantrópica, há pessoas envolvidas. Pessoas, como todo mundo já sabe, são diferentes, são difíceis e não há duas iguais (e nem pense em fazer piadinhas com gêmeos! Não são pessoas iguais.). Em muitos dos casos, a situação que leva uma equipe de Vigilância à uma residência é apenas o começo de uma grande questão social e, muitas vezes, desumana.

     Com o passar dos anos notei ser crescente o número de processos envolvendo pessoas em condições muito precárias de vida que chegam aos balcões dos protocolos públicos. A Vigilância acaba sendo o setor onde todos querem se apoiar e onde recaem os problemas já em fase avançada de complicação, por exemplo: Normalmente os bichos aparecem numa casa em decorrência das condições precárias de um imóvel ou por conta das condições do próprio imóvel onde ele apareceu. No lugar de se queixarem do imóvel com problemas, as pessoas se queixam do bicho que apareceu. Aparece uma aranha numa casa. O morador chama a Vigilância e começa a falar um monte para quem atender sua reclamação.

Alguns casos são assim:

(versão telefônica)

Notificante diz: “Escuta aqui! É da Vigilância Sanitária!?”
Atendente responde: “Não, aqui é da Vigilância Epidemiológica.”
Notificante diz: “É da que cuida dos bichos!?”
Atendente responde: “É.”
Notificante diz: “Escuta aqui! Entrou uma aranha enorme na minha casa. É um absurdo! Aqui do lado tem um terreno cheio de mato, entulho, os vizinhos tacam lixo, tem um cara que põem um cavalo, de vez em quando eles botam fogo...”
Atendente questiona: “A aranha está viva?”
Notificante diz: “Lógico que não! Batemos com vassouras, meu filho tacou pedras... aí pusemos álcool e metemos fogo.”
Atendente responde: “Certo. Senhora, pedirei para que uma equipe vá até sua casa para tentar identificar a aranha, ver qual é o problema e para passar algumas informações. Para isso preciso abrir uma ocorrência. Qual seu nome? Endereço completo? E telefone pra contato?
Notificante diz: “Nem precisa, já joguei a aranha fora. Só quero que olhem o terreno. Meu nome num vai sair em nenhum lugar pro dono do terreno ver não, né?”
Atendente responde: “Os fiscais devem manter os notificantes em sigilo, mas, na verdade, a reclamação do terreno a Senhora precisa fazer pessoalmente ou pedir para alguém fazer o protocolo lá na Prefeitura. Aqui é uma seção da Saúde. Até encaminhamos processos para lá, mas seu problema é limpeza pública. A aranha só apareceu por causa das condições do terreno, certo? Sendo assim é bom a Senhora ter o nosso atendimento e também fazer o protocolo do pedido de limpeza do terreno.”
Notificante diz: “Tá vendo só, é o que todo mundo fala mesmo: Vocês são tudo um bando de vagabundos!!!! Ficam empurrando o serviço! Aparece uma aranha na minha casa e ainda tenho que me expor e reclamar do terreno... num vou dar nome nenhum não e nem quero que venha ninguém aqui. Vou por fogo no terreno quando o mato secar e que se dane!”

     Mesmo não sendo a regra, o comportamento sugerido acima é comum. Muita gente trata todo funcionário público como vagabundo. Mesmo quando nitidamente o fator causador do aparecimento de um bicho está relacionado com as condições precárias de um imóvel vizinho, as pessoas só se revoltam com o Estado e seus funcionários, ou servidores (se preferirem), mas não tomam as medidas legais contra os proprietários destes imóveis, que são os verdadeiros vilões. Assim como registrar Boletins de Ocorrências norteia as ações da Polícia no combate ao crime, os protocolos junto aos órgãos públicos competentes e o papel exigente e fiscalizador dos cidadãos é que garantem que certos espertinhos não possam ter um monte de lotes e imóveis cheios de problemas na Cidade e que quase nunca sejam multados (e que o Estado e seus agentes trabalhem efetivamente pelo bem coletivo).

Só para informação: Demandas de queixas e reclamações não devem ser cobradas e, até onde sei, não são. Desta forma não há desculpas para não reclamar e não exigir seus direitos.

     Há alguns passos a se seguir para ver seus pedidos “andando”:

é necessário ter paciência e entender que o Estado, de maneira geral é super burocratizado para evitar fraudes. O que, obviamente, facilita as fraudes e tem como única consequência tornar o Estado lento e engessado, dificultando o trabalho dos profissionais que raramente recebem treinamento adequado para lidar com a “burrocracia” do Estado.

não ache que tratar um funcionário público como um idiota ou com grosseria agilizará as coisas. Você pode estar falando com um bom profissional e sendo injusto com seu comportamento. Normalmente, o funcionário público precisa cumprir uma rotina de preenchimento de formulários, processos, memorandos, check lists, e tantas outras coisas que ele não está sendo lento para tornar sua vida pior. Ele apenas está tentando fazer seu trabalho para que ambos, você e ele, continuem suas vidas em paz. Se você perceber que é corpo mole, denuncie!

faça seus pedidos por escrito (em 2 vias) e exija protocolos, carimbos e assinaturas de recebimento. Não aceite acordos verbais, sempre faça por escrito.

não basta fazer a solicitação, você precisa acompanhar o andamento do processo. Peça informações pela internet, por telefone e até pessoalmente. Demonstre interesse.

se sua demanda não for atendida ou se você acreditar que o problema não foi adequadamente sanado, você deve cobrar novas providências. Se isto não ocorrer, busque informações no Ministério Público ou com um(a) Advogado(a).

se o problema for resolvido mas voltar a se repetir, repita os procedimentos até estourar o saco do proprietário e ele levar tantas multas que será melhor vender ou utilizar o imóvel. Assim tanto o notificante quanto as equipes de fiscalização terão mais tranqüilidade.

seus pedidos devem ser feitos nos órgãos competentes. Não adianta procurar favores políticos para ver seus pedidos atendidos. Como cidadãos, todos temos o direito de ver nossas demandas sanadas. Os políticos devem apenas garantir o bom funcionamento da máquina pública através da fiscalização que lhes é dever (muito pouco cumprido). Se você é merecedor de uma multa, tenha dignidade e pague, não barganhe seu voto!

     Esclarecidos estes importantes pontos, retomemos o assunto desta postagem... as pessoas invisíveis.

     Tanto pela Vigilância Sanitária quanto pela Epidemiológica, ano após ano venho me deparando com situações que exigem muito equilíbrio emocional e uma rápida tomada de decisões. Casas denunciadas, supostamente por problemas de limpeza e questões envolvendo ratos e outras pragas, acabam sendo na verdade tristes lares de pessoas completamente sem condições de manter suas vidas de forma adequada. Dependentes de álcool e de drogas, idosos abandonados pela família ou mantidos à míngua por causa de uma pensão, pessoas com transtornos mentais e várias outras situações existem aos montes nas cidades modernas e exigem soluções dos Agentes públicos. Não há dentro da estrutura pública mecanismos eficientes e preparados para lidar com estas questões. Aliás, geralmente, a estrutura pública é ruim, são alguns poucos funcionários engajados e compromissados com seus serviços que fazem a coisa funcionar.
quarto-banheiro-cozinha
     Me considero um destes profissionais responsáveis. Mais que isso, participei com meu suor da retirada de muitas e muitas toneladas de lixo e entulho de dentro de casas e quintais. Me deparei com situações onde vi que se eu não me propusesse a fazer o trabalho braçal e os encaminhamentos necessários, ninguém o faria. Estive em lugares onde os verdadeiros responsáveis pelo atendimento tinham nojo de entrar. Participei do resgate de vidas que estavam completamente deterioradas. Fiz tudo isso e posso contar nos dedos das mãos quem foram meus verdadeiros parceiros.

     Para algumas pessoas, melhor seria esconder as casas sujas e sumir com seus moradores porcos. Para o funcionário público cansado e acomodado, sua única obrigação é preencher papéis e encaminhar burocracias, todas as vidas que passam por suas mãos são apenas transformadas em números e registros, nada mais. Mesmo quando ele vai fazer uma atividade destas, vai de má vontade e faz tudo no atropelo. Como estamos lidando com vidas, não é possível mensurar qual vale mais, desta forma, se for possível tentar faze-la melhor, porque não? Porque se transformar num ser frio e mecânico que não sente nada ao ver o sofrimento humano? Poderia fazer como a maioria dos hipócritas com aquele péssimo discurso diante de desgrasças: “É nessas horas que a gente vê que é feliz e reclama de barriga cheia.”... então é pra isso que serve ver alguém em condições péssimas de vida!? Pra se sentir feliz!? Pra ver que a própria vida é melhor que a de um pobre coitado!? Que egoísmo...


a fé...
     Seguirei uma seqüência de relatos de fatos que ocorreram em trabalhos de campo que fiz na cidade de Araraquara (interior de São Paulo). Mesmo tendo ótimos indicadores de nível e qualidade de vida, questões sociais, de saneamento e de saúde borbulham nas mais diversas áreas do Município. Maiores inclusive que a capacidade de atendimento. Imagine nas cidades que estão na outra extremidade destes indicadores.

     Os casos que relatarei são de atendimentos nos quais as questões de Vigilância em Saúde propriamente ditas eram um pormenor.

Caso Maria da barba

     Sempre aberto por um notificante cujo nome, endereço e telefone não existiam, a casa onde residia a Dona Maria, conhecida por alguns como Maria da Barba ou Maria Louca, era alvo constante destas denúncias. Hora por causa do número de gatos, hora por causa do mau cheiro, hora por causa de água parada ou de ratos... sempre havia algum motivo para as denúncias. Não que de fato não houvessem os motivos. Eles existiam aos montes. A casa estava mesmo muito ruim. Havia trincas que possibilitavam ver o outro lado. Não era necessária qualquer habilitação em engenharia para achar que a casa colocava em risco os moradores. O esgoto era de “manilha” e estava bem danificado e entupido. Na casa, além das 3 pessoas, havia uns 12 gatos e 2 cães. Dadas as condições do imóvel, a limpeza era complicada, desta forma, o cheiro era mesmo bastante forte... uma mistura de fezes e urina de bichos e humana. Havia muitos pontos com rações e comidas para os gatos. Nestes pontos havia indícios de que o local não era higienizado há muito tempo, pois estavam engordurados e encrustados de restos de comida, cheiro que também se sentia pelo ar. Os móveis estavam bem deteriorados e sujos. Num quarto todo embolorado havia um colchão e muitas roupas jogadas. A cozinha estava bem suja e cheia de restos de comida. A casa não possuía laje e uma parte dos fundos já havia caído.
gato
     Na primeira vez em que estive lá, fiquei pensando por alguns instantes: Como uma pessoa chega a isto? Como pode viver assim?


dormitório
dormitório
     Além de observar minuciosamente o imóvel e suas condições, é necessário interagir com os moradores para tentar deixa-los à vontade e minimizar os constrangimentos de uma fiscalização. Esta interação requer boa vontade, percepção, talento e sobretudo respeito. Depende desta interação a chave para se desenvolver ou não um trabalho educativo, base de toda a Vigilância em Saúde, e para ter acesso livre ao local em futuras vistorias de acompanhamento. Se um profissional de campo ganhar a confiança de seu público, ele conseguirá causar algumas transformações e seu trabalho fluirá mais harmoniosamente.
teto do dormitório
     Enquanto observava o imóvel busquei conversar com os moradores de maneira bem popular, usando palavreado simples e descontraído. Percebi que um homem com cerca de 60 ou 65 anos se expressava muito bem, era bem ponderado e aparentava algum problema sério de saúde. A Dona Maria, ao contrário do que eu imaginei, conversava bem e demonstrava um bom raciocínio e memória, além de parecer muito franca. Havia também a filha da Dona Maria. Esta conversava com um pouco mais de dificuldade. Ficava facilmente agitada e nervosa. Tinha muito medo de imaginar que poderiam retirar seus gatos de lá. Este assunto era praticamente proibido. É muito importante para o profissional de campo respeitar as diferenças e decodificar seu campo de ação e até onde vão seus limites reais em cada situação.
gato 2
     Durante a vistoria fui fotografando todo o local e conversando com os moradores. Fui fazendo perguntas pessoais sobre as condições de saúde dos 3 e sobre atendimentos que eventualmente eles teriam pelo SUS (e aí engloba tudo, inclusive as vigilâncias... por isso o nome Sistema Único).
cozinha
     Segundo os relatos, tirando a filha da Dona Maria, que freqüentava a rede municipal e andava com suas consultas e medicamentos em ordem, os outros dois casos eram bem preocupantes. O homem era diabético e hipertenso e se auto medicava e a Dona Maria não fazia qualquer acompanhamento, exceto quando com dores ou doente.

     Burocraticamente falando, era só fazer uns papéis, encaminhar e pronto. Mas e aí? Não dava para fazer mais nada? As vezes não dá. O que é muito triste.

     Naquela hora só tive uma idéia. Queria ensina-los a limpar a casa. Algum padrão teria que ser estabelecido ali. Algum limite teria que ser estabelecido. Algo deveria servir como moeda de troca. Do jeito que a coisa estava não poderia ficar. Tentamos negociar a permanência dos gatos atrelada à limpeza periódica do imóvel com produtos adequados.
dormitório-cozinha
     Uma conversa destas pode durar horas, pode durar meses, pode nunca acabar. Para minha sorte, não sei se certas conspirações universais agem em nosso favor, mas naquele dia, todos estavam em sintonia. A conversa fluiu muito bem. No começo foi difícil convence-los de que a água sanitária custava menos de R$1,00 e que o detergente menos ainda. Depois conseguimos combinar algumas melhorias. Todos se comprometeram a ajudar na limpeza. A renda deles não era das piores. Dava para viver. O problema estava na auto estima. Chegamos num local onde as pessoas haviam desistido delas. Cada uma do seu jeito e com seus problemas, mas no mesmo barco.
comida para os animais
     No decorrer das conversas, perguntei sobre a história de vida da Dona Maria. Perguntei desde quando ela morava naquela casa. Ela não mudava sua expressão. Conversava sempre com o mesmo olhar. Me contou que morava ali desde muito nova. Toda sua família morava ali. Ela então começou a me contar passagens marcantes de sua vida. Lembrou que ainda nova perdeu uma filha. Graças a isso surtou, entrou em depressão, não conseguia lidar com a dor da perda. Seu pai, ao ver tal situação, internou-a numa fazenda manicômio. Perguntei quais lembranças ela tinha de lá. Ela me disse que vieram e a levaram numa camisa de força. Ao chegar no local ela disse se lembrar que a primeira coisa pela qual passou foram os choques na cabeça. Segundo ela, depois disso, ela nunca mais ficou “normal”.
demos uma varrida na sala
     Não é fácil ouvir certas coisas e não se emocionar. Não imaginar o sofrimento de uma mulher que perde um filho e ainda é torturada. Mais emocionante ainda é enxergar um ser humano lindo e cheio de amor em alguém onde as pessoas não vêem nada.

     Ao terminar meu trabalho de vistoria e levantamento no local, pedi para tirar uma foto dela. Pedi que ela desse um sorriso bem bonito para eu fotografar. Nesta hora, na mais pura sinceridade, ela me disse: “Eu não sei sorrir.” Nunca me esquecerei desta frase. No hora fiquei muito comovido.
Dona Maria em sua casa
     Voltamos mais algumas vezes na casa deles e fizemos uma série de encaminhamentos oficiais. Notamos melhoras significativas na casa, porém as condições estruturais do imóvel não ajudavam.

     Considerando ser a semana do dia internacional da mulher, presto esta homenagem a Sra. Maria. Por quem me emocionei ... por quem chorei. Apesar de invisível para muitos, tive a chance de ver a Dona Maria da barba e de fazer algo por ela, mesmo que pouco.
um tímido sorriso de uma mulher sofrida
     Hoje ela é falecida, a casa foi demolida e sua filha e seu cunhado vivem numa instituição para idosos...


Dona Maria... faleceu cerca de 1 ano após esta foto

     Na semana que vem, dois casos. O da Sra. Tereza e o da Ângela. A Sra. Tereza tinha mal de Alzheimer e vivia sozinha e a Ângela era uma mãe dependente de crack com um recém nascido.

Obrigado e até a próxima....